Consórcio internacional identifica gene que desencadeia síndrome rara
Portadores de fibromatose gengival apresentam dificuldades na mastigação e na fala
Pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp, da Universidade de Montes Claros, em Minas Gerais, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, e da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, acabam de descobrir o gene causador da síndrome da fibromatose gengival e anomalias dentais. A doença é raríssima e as manifestações mais graves podem incorrer em retardo mental, além de os portadores apresentarem dificuldades na mastigação e na fala. Em geral, a fibromatose gengival promove o crescimento exagerado da gengiva a ponto de cobrir a coroa dos dentes, impedindo a higienização adequada. A síndrome pode apresentar ainda a malformação do esmalte dental e/ou amelogênese imperfeita, que tornam os dentes mais suscetíveis à cárie, além de interferir na estética.
A somatória de todas essas manifestações foi descrita como uma síndrome rara pelo professor da Área de Patologia da FOP Ricardo Della Coletta, em 2008, quando se investigou uma família em que a doença está sendo transmitida de geração para geração. Naquela época, a descoberta e a caracterização da doença mereceram destaque no periódico americano Journal of Periodontology. Relatos isolados da síndrome também foram reportados na África do Sul, na Turquia em alguns países da América Latina. No entanto, Coletta alega que a expressão fenótipa é variável. Ou seja, não necessariamente todos os pacientes possuem as manifestações juntas.
A descoberta do gene causador da síndrome foi publicada recentemente em uma das principais revistas do mundo na área de genética humana, a The American Journal of Human Genetics. Participaram do consórcio internacional, além do professor Ricardo Della Coletta, os professores Hercílio Martelli Junior, da Universidade de Montes Claros, e Jeffrey C. Murray, da Universidade de Iowa, com a colaboração da equipe do professor Michael Dixon, da Universidade de Manchester. As etapas experimentais ficaram a cargo da cirurgiã-dentista Carolina Cavalcante Bitu, que desenvolveu projeto de doutorado sanduíche, apoiado pela Capes, na Universidade de Manchester. O estudo “Whole-exome sequencing identifies FAM20A mutations as a cause of amelogenesis amperfecta and gingival hyperplasia syndrome” recebeu um destaque especial no site da revista americana. O texto completo, bem como o comentário sobre o estudo, podem ser acessados no endereço https://www.cell.com/AJHG/.
O próximo passo das investigações conduzidas pelos pesquisadores do consórcio internacional será a caracterização da função normal do gene para, então, se entender porque esse defeito causa a síndrome. “Nós temos a síndrome, o gene e uma correlação entre eles. No entanto, o mecanismo que faz com que a doença se desenvolva ainda é desconhecido”, destaca o professor Ricardo Coletta. Para isso, os pesquisadores vão buscar semelhanças com os casos já reportados em outros países e definir se são causados por mutação do mesmo gene ou não.
Há que se observar, explica Coletta, que nenhuma outra doença já descrita tem este tipo de defeito, pois não se trata de polimorfismo – ou variações genéticas. Para ele, as características do achado não se assemelham com as alterações que acontecem frequentemente na população brasileira. Daí, os subsídios de que o defeito seja o causador da síndrome. Muitas doenças que se apresentam de forma isolada, acrescenta o pesquisador, podem ter o fator genético similar que seriam defeitos diferentes no mesmo gene. Com isso, abre-se o caminho para entender se as formas isoladas da amelogênese imperfeita são causadas por defeitos nesse gene que acaba de ser descoberto. “Esse novo conhecimento permite um diagnóstico mais preciso, além de entender o papel do gene no desenvolvimento normal do esmalte, que é o tecido mais duro que há no corpo humano e cujo desenvolvimento ainda não é conhecido por completo”, comemora o pesquisador.
Metodologia
Uma vez descrita a síndrome rara, em 2008, o professor Ricardo Della Coletta fez contato com a equipe liderada pelo professor Michael Dixon, da Universidade de Machester. “Ele tinha as condições de desenvolver a pesquisa, que se baseou na procura em todo o genoma das pessoas afetadas pelo gene defeituoso, investigação que nós não temos como fazer aqui no Brasil”, destaca Coletta, informando que para isso foi realizado o isolamento do DNA de pacientes normais e de pessoas afetadas pela doença.
Para o desenvolvimento do estudo, foi utilizada uma tecnologia não disponível no Brasil, mas muito atual e usada cada vez mais na análise de genomas. Embora essa tecnologia tenha um custo elevado, a tendência é que ela se popularize devido à sua eficácia. Segundo o professor, consiste na ferramenta número um quando o assunto é procura por defeito genético. Num primeiro momento, os pesquisadores realizaram o que chamam de perda de heterozigose, que consiste em utilizar um arranjo de polimorfismos para se tentar identificar regiões do cromossomo que não eram similares entre os indivíduos normais e afetados, sugerindo uma região onde o defeito genético estava associado.
“As pessoas possuem 23 pares de cromossomos. Foi feito um mapeamento na tentativa de buscar regiões que eram diferentes entre o indivíduo normal e o afetado. Essa região é provavelmente onde reside o defeito genético. Além disso, foi usado o que chamamos de exoma, ou seja, sequenciamento de todos os éxons (região responsável pela sequência de nucleotídeos que vai dar origem a proteína e aos defeitos genéticos) tanto do indivíduo normal quanto do afetado”, explica Coletta. O material genético armazena as informações na forma de códigos de nucleotídeos, e estes códigos são transformados em sequências de aminoácidos, formando as protéicas. São as proteínas que exercem a função. “Os pesquisadores da FOP sequenciaram todos os éxons, sendo que o custo da técnica gira em torno de 10 mil dólares por paciente. Foi sequenciado o DNA de nove pessoas”, relata.
Gerações
A família investigada pelo professor Ricardo Della Coletta, desde 2007, é formada por 40 pessoas, todas do norte de Minas Gerais. Três gerações passaram por análises do pesquisador, mas somente as duas últimas foram afetadas. “Não são todos que possuem a doença. Sete pessoas manifestaram o fenótipo completo – a amelogênese imperfeita e a fibromatose gengival. Já o retardo mental foi muito aleatório, e apenas uma pessoa da família apresentou as três manifestações simultaneamente”, explica. A pessoa mais velha dessa família está com 70 anos de idade e pode ser considerada a voz dos pacientes afetados recentemente. “Não teve como examinar essas pessoas, uma vez que já perderam todos os dentes. Entretanto, não relataram nenhuma alteração similar nos mais novos. Por isso, entendemos que eles não tiveram a manifestação da doença. O exame genético também demonstrou que elas não tinham o gene defeituoso, o que daria suporte para que não sejam afetados futuramente”, analisa.
Embora o conhecimento desse novo gene não traga um alívio imediato para os pacientes no que diz respeito aos sintomas, as chances de se entender o mecanismo da doença favorece aqueles que vierem a se casar e pretendem ter filhos. “Certamente, as próximas gerações terão um atendimento melhor, porque já é conhecida a síndrome e já se sabe como tratá-la. Para aqueles que vierem a desenvolver as manifestações da doença, será possível fazer uma intervenção precoce, o que significa evitar as perdas na estrutura dentária e as dores, uma característica sempre presente nos portadores”, relata.
Por outro lado, a descoberta, segundo o professor, contribui de imediato para as investigações científicas de uma maneira geral, que para ele é construída de um tijolinho após o outro para que se consiga uma resposta concreta. “Com certeza, essa descoberta determina que se entenda melhor a síndrome conhecida no seu aspecto clínico e radiográfico, mas desconhecida quanto ao seu mecanismo genético”, explica. A pesquisa serviu também para caracterizar a doença e, com isso, facilitar diagnósticos futuros de possíveis pacientes com lesões similares.
É importante destacar que a doença fibromatose consiste em uma das linhas de pesquisa do Laboratório de Patologia da FOP. “Trabalhamos com essa doença há mais de 20 anos. Isso faz com que o laboratório seja um centro de referência de pacientes diagnosticados por essa patologia ou os que apresentem essa manifestação dentro de alguma outra doença, como é o caso da síndrome rara. Quando foi feito o diagnóstico, nos procuraram para ajudar a estudar, diagnosticar e a entender a doença”, esclarece o professor da FOP.
O docente explica ainda que o tratamento da doença é bastante complexo. Isto porque, por meio de várias cirurgias periodontais, o excesso de tecido gengival precisa ser removido para depois se proceder a manutenção dos dentes. A cirurgia, nestes casos, aconteceria para se recobrar a funcionalidade, sem se esquecer a questão estética, também importante. “Os adolescentes, em geral, procuram realizar o tratamento cirúrgico com mais frequência por conta da estética. Para o caso da malformação do esmalte dental, o tratamento recomendado é basicamente o restaurador. É necessário, porém, tomar medidas quanto à prevenção, porque quando há algum problema no esmalte, o dente fica mais suscetível à cárie”, explica Coletta.
Artigo
Murray, J. C.; Dixon, M.; Coletta, Ricardo Della; Martelli Junior, H.; Bitu, Carolina. The American Journal of Human Genetics, maio 2011. Whole-exome sequencing identifies FAM20A mutations as a cause of amelogenesis amperfecta and gingival hyperplasia syndrome - https://www.cell.com/AJHG
Origem: Biologias
Fonte/Referências: https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/junho2011/ju499_pag7.php#
Autor(a)/Créditos: Jornal da Unicamp